quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Da Guerra Para o Amor: cartas

                              1ª CARTA

  
Está difícil suportar essa situação, há três dias que essa guerra não tinha pausa, acordamos com os morteiros lançados vizinho ao acampamento. Já não vejo nada belo a não ser a tua fotografia, amassada em meu bolso. Tenho de vê-la em segredo, pois todas as fotografias de mulheres, até mesmo desenhos, são cobiçados e já viraram até moeda de troca por cobertor, comida e água limpa. Há quem durma ao léu, no frio intenso, apenas para aquecer a mente com fantasias afetivas.


 Não é fácil esconder meus sentimentos. Fica cada vez mais evidente que faço tudo para não matar alguém. Já não proponho mais diálogos com os inimigos, pois já fui exposto ao ridículo por aqueles que tem sangue nos olhos. Isso aqui mais parece um parque de diversões para uns sujeitos que deveriam estar em jardins zoológicos, servindo de exemplo de como não se deve ser, ou serem estudados para diagnosticar como não se deve criar e educar crianças. Alguns deles, se pudessem, matariam inclusive os companheiros de exército. Mas como isso abreviaria a participação deles nessa guerra, não o fazem. Querem permanecer o máximo possível nessa terra de ninguém, caçando vidas.



Sou um pacifista, sempre fui. Acredito e sempre acreditarei no poder da conversa, do diálogo. Todos deveríamos partilhar o mesmo pão, usar igualmente as terras e delas cuidar e usufruir. Para quê isso tem de ser "meu"? Ou "seu"? O que houve com o "nosso"?


A podridão aqui assusta, banho só de água suja, duas vezes por semana, se tiver sorte. A guerra só pára quando chove, todos precisamos da água. Então, como em um acordo tácito, quando chove temos trégua para que cada lado procure armazenar e tomar água da chuva. É o único momento em que vejo sentimentos bons nos olhos deles, alguns chegam a encher os olhos de lágrimas, de tanta alegria. Acredito que tanta sujeira contribua para que a maioria se comporte como bichos irracionais, uma maneira de suportar essa realidade nada humana.


Nesse caos sentimental, tenho o que chamo de tratamento emocional. Além das minhas orações, repito em minha mente poesias que me obrigaram a aprender na escola. Isso serve para que eu me mantenha são, e não entre nessa "pilha" de super herói ou de personagem de vídeo game adolescente. Só assim me mantenho sadio, e não esqueço da beleza da essência humana, dos sentimentos, dos meus princípios. Já até consegui fazer algumas que, com um pouco mais de coragem, escreverei em outra carta.


Essa guerra não terá vencedores, já não chamam os "companheiros" pelo nome, cada um recebeu um número, para reduzir a comoção pelos abatidos. E como são muitos! Todos os dias. Dou graças a Deus por estar vivo e, mais do que isso, mentalmente são. Muitos aqui já são mortos-vivos, duvido que consigam voltar a normalidade após a guerra. Já ouvi de um, e concordo com ele, que será melhor se ele morrer aqui, pois não haverá lugar para o que ele se tornou caso consigamos conquistar a paz pela qual estamos lutando.


Poderia dizer: "Seria cômico se não fosse trágico", mas definitivamente não consigo achar elementos cômicos nessa ironia. Seres humanos lutando por uma paz que eles jamais serão capazes de usufruir. Se tornando animais cujo único habitat possível é o que os transformou, a guerra; perdendo a capacidade de se adaptar, algo tão essencial e característico da raça humana. Sempre achei bobagem as palavras de Ghandi, mas hoje vejo que é impossível alcançar a paz pela guerra, pelo menos não a paz interior, a mais importante.

 No pensamento da maioria aqui, nos raros momentos em que não estão comemorando uma chacina ou abatidos e com medo pela morte de algum "companheiro", o mundo lá fora é lindo, uma maravilha. Praticamente só existem parques com árvores e gramados bem verdinhos, bem conservados, cheios de crianças bonitas e bem educadas, brincando sem se sujar. Admito que até eu já me deixei viajar por alguns instantes..., mas logo percebo, em um suspiro de sanidade, que estas lembranças não passam de uma criação utópica. Creio que essa desilusão aumentará ainda mais o desequilíbrio psicológico desses soldados.



Não tema apenas a guerra, mas os produtos dela. A história aqui se assemelha a uma casa grande, onde são necessários vários cães ferozes para guardá-la, contudo, durante o dia, eles precisam estar presos, para não ferirem as pessoas que eles tem o dever de proteger a noite.

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